sexta-feira, setembro 30, 2005

Trecho



"Coleman, você está muito tempo fora da sala de aula."

"E você até hoje não saiu dela. Minha cara", disse ele, escolhendo bem as palavras, com um sorriso calculadamente irritante, "passei a vida inteira lendo essas peças e pensando nelas."

"Mas nunca na perspectiva feminista de Elena."

"Tampouco da perspectiva judaica de Moisés. Tampouco da perspectiva nietzchiana sobre a perspectiva, tão na moda atualmente".

"Coleman Silk é a única pessoa na face da Terra que só tem uma perspectiva: uma perspectiva literária pura e desinteressada."

"Quase sem exceção, minha cara" - outra vez? E por que não? - "nossos alunos são de uma ignorância abissal. A formação deles é de uma ruindade inacreditável. Eles levam uma vida marcada pela esterilidade intelectual. Eles chegam sem saber nada, e a maioria deles vai embora sem saber coisa alguma. E o que eles menos sabem, quando se matriculam no meu curso, é como ler o teatro clássico. Lecionar na Athena, principalmente, na década de 90, ensinar para a geração que é de longe a mais burra da história dos Estados Unidos, é a mesma coisa que subir a Broadway lá em Manhattan falando sozinho, só que, em vez das dezoito pessoas que ouvem você na rua falando sozinho, aqui estão todos na mesma sala de aula. O grau de conhecimento desses alunos é, sacou, tipo assim, zero. Depois de quase quarenta anos lidando com esse tipo de aluno - e a senhorita Mitnick é bem típica - posso lhe afirmar que nada poderia ser pior para eles do que uma leitura de Eurípides com um perspectiva feminista. Apresentar aos leitores mais ingênuos uma leitura feminista de Eurípedes é uma das melhores maneiras que se pode imaginar de desligar o raciocínio deles antes mesmo de ter oportunidade de começar a demolir o primeiro 'tipo assim' deles. Chego a achar difícil acreditar que uma mulher instruída, com uma formação acadêmica francesa como a sua, seja capaz de acreditar que existe uma leitura feminista de Eurípedes que não seja pura bobagem. Será que você se converteu em tão pouco tempo, ou será apenas uma manifestação do tradicional carreirismo ditado pelo medo de suas colegas feministas? Porque se for mesmo carreirismo, por mim tudo bem. É uma coisa humana, eu entendo. Agora, se for um compromisso intelectual com essa idiotice, então eu estou pasmo, porque você não é nenhuma idiota. Porque você é uma pessoa instruída. Porque na França ninguém da École Normale levaria essa bobajada a sério. Será possível? Ler duas peças como Hipólito e Alceste, depois ouvir uma semana de discussões em sala de aula sobre cada uma delas, e no fim não ter nada a dizer sobre as duas peças além de que são 'degradantes para as mulheres'- isso não é 'perspectiva' coisa nenhuma, meu Deus - isso é abobrinha. Abobrinha da moda."

(Philip Roth, A marca humana. trad. Paulo Henriques Britto. Cia. das Letras, p. 245-246.)

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

nossa, que bacana, Adriano. Roth rulez, mesmo. :)))))

10:29 AM  

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